ColunistasRoberto Borges Kerr

PEC dos Precatórios e Benefícios Sociais

PEC dos Precatórios e Benefícios Sociais

Para tentarmos entender essa polêmica da PEC dos Precatórios, estouro do Teto de Gastos, Precatórios e Benefícios Sociais, vamos por partes, como diria nosso bom Jack, o estripador.

Começando com o Teto de Gastos. Em 2016 o Congresso aprovou uma emenda constitucional que estabelece que o governo não pode gastar mais do que um determinado teto de despesas. E que teto é esse? Essa medida prevê que os gastos do governo para cada ano não podem exceder aos gastos do ano anterior corrigidos pela inflação.

A turma da velha guarda, como eu, teve infelizmente muita experiência com correção monetária no Brasil, mas as gerações mais novas felizmente não tiveram, porque conseguimos, desde 1995, controlar o dragão da inflação, como era caricaturizado esse fenômeno do aumento generalizado de preços nos jornais. Então vamos dar um exemplo simples, para que a geração mais nova entenda como funciona isso. Suponhamos que neste ano os gastos do governo tenham sido de R$ 4 trilhões. OK, eu sei que estes números do orçamento são tão gigantescos que perdemos a sensibilidade para realmente entender o que são R$ 4 trilhões. Imagine um Renault Logan zero km que custa cerca de R$75.000,00; daria para o governo federal comprar 53 milhões desses carros com o orçamento da união. Agora vamos imaginar que a inflação tenha sido de 10% em 2021. Pela lei do Teto de Gastos o governo não poderia gastar mais do que R$ 4 trilhões acrescidos de 10%, ou seja, R$ 4,4 trilhões para o ano de 2022.

Apesar da gritaria dos políticos com a nova norma do Teto de Gastos, na minha opinião é uma medida muito sensata. Não asfixia o governo, como costumam dizer os políticos gastadores. Afinal não se está reduzindo gastos, ao contrário, os gastos estão aumentando em valor nominal, mas permanecem os mesmos em moeda constante.

Nestes dois últimos anos o Brasil e o mundo viveram sob uma pandemia nunca vista antes, com lockdowns, afastamentos sociais, mortes, máscaras, vacinas e, efeitos muito prejudiciais na economia. Uma parte grande da população que antes da pandemia ganhava seu sustento honestamente com muito trabalho, de repente, de uma hora para outra, viu-se sem renda nenhuma. Alguns exemplos bem óbvios são cabeleireiras, manicures, barbeiros, garçons, lojistas  e, no início das restrições, no começo de 2020, até os motoristas de taxi e de aplicativo viram suas rendas desaparecerem.

Ante esse cenário de Apocalipse era imprescindível que o governo fizesse algo, a solução adotada foi o Auxílio Emergencial. O governo incialmente propôs um auxílio de R$200 por pessoa por mês, mas o congresso aumentou esse valor para R$600 na primeira etapa e R$400 na segunda etapa. Não querendo parecer engenheiro de obra feita, o valor inicial de R$600 parece ter sido demasiado, gerando um aumento de gastos que ajudou a pressionar os preços e aumentar a inflação. Com isso conseguimos atravessar 2020 e 2021.

Na segunda metade de 2021, na hora de preparar o orçamento para 2022,  o governo constatou que o auxílio ainda seria necessário (comentário meu, deve haver razões políticas para isso também, visto que será ano de eleição e medidas desse tipo tendem a deixar a população beneficiada muito feliz e propensa a votar no governo).  Veio então a ideia de extinguir o antigo Bolsa Família e criar um programa novo de benefícios sociais, o Bolsa Brasil, com valores mais altos e com abrangência maior (maior número de beneficiados), incorporando assim os dois auxílios em um só programa. O benefício básico do Bolsa Família era de R$ 189,00. O gasto total da união com o programa era de cerca de R$ 35 bilhões e eram atendidas aproximadamente 14 milhões de pessoas.  O novo programa, o Bolsa Brasil, tem uma estimativa de atender 17 milhões de brasileiros. Isto gerará uma despesa adicional (o Bolsa Família foi eliminado e seus recursos orçamentários transferidos para o Bolsa Brasil) de cerca de R$ 50 bilhões.

A necessidade social desse pagamento não é contestada por nenhum dos lados, nem governistas, nem oposicionistas. Aparentemente o fator eleição deve ter alguma influência nessa unanimidade. Mas, em 2015, foi aprovada uma outra PEC que proíbe o Legislativo e o Executivo de propor despesas sem indicar a fonte de receitas que financiará a despesa. Assim sendo, para criar essa despesa do Bolsa Brasil é necessário explicar de onde virão os recursos.

Há também a “regra de ouro” do Orçamento que está prevista na Constituição Federal e é um mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários, benefícios de aposentadoria, contas de luz e outros custeios da máquina pública. Quando a regra é descumprida, os gestores e o presidente da República podem ser enquadrados em crime de responsabilidade. Os dispositivos legais que disciplinam a “regra de ouro” são o artigo 167, inciso III da Constituição Federal, artigo 2, § 3º, da Lei Complementar nº 101 de 2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal e o artigo 6º da Resolução do Senado Federal de 2007.

Resumindo até aqui:

  • Há a necessidade de gastos adicionais de cerca de R$ 50 bilhões para pagar o novo programa social;
  • Não se pode criar despesa sem indicar de onde virão os recursos;
  • Não se pode ultrapassar o Teto de Gastos;
  • O governo não pode emitir títulos públicos (se endividar) para cobrir despesas correntes (regra de ouro).

Soluções possíveis:

  • Aumentar impostos;
  • Os parlamentares renunciarem às despesas orçamentárias extras, às quais eles têm direito de incluir no orçamento, conhecidas como emendas parlamentares, incluindo-se aí as polêmicas emendas do relator. As emendas do relator são ferramentas criadas pelo Orçamento Impositivo que dão ao relator da Lei Orçamentária Anual o direito de encaminhar emendas que precisam ser priorizadas pelo Executivo. Como não são claramente discriminadas nos sistemas nos quais é feito o controle da execução orçamentária, também são chamadas de “orçamento secreto”. A Câmara dos Deputados, de acordo com a nota técnica nº 63/2021 da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira, de 8 de novembro de 2021, afirma que as emendas do relator “tradicionalmente, são utilizadas com a finalidade de corrigir erros ou omissões de ordem técnica do projeto de lei orçamentária, ou seja, um instrumento colocado à disposição dos relatores para que possam cumprir a função de organizar e sistematizar a peça orçamentária”.
  • Desistir do novo benefício social.
  • Manobras criativas para contornar estas dificuldades.

 

É fácil perceber que as possíveis soluções para fazer caber no orçamento o novo benefício social não são fáceis de se implantar. Aumento de impostos é uma medida impopular em qualquer tempo, em ano eleitoral os congressistas sabem que é inviável. A própria sociedade faria forte resistência a esta solução.

Os parlamentares renunciarem às suas emendas também seria difícil em qualquer tempo, em ano eleitoral é praticamente impossível.

Desistir do novo benefício social, principalmente em ano eleitoral, também é praticamente impossível.

Restaram somente as manobras criativas para contornar as dificuldades. Dar um calote nos precatórios foi a solução encontrada.

O que são precatórios? Quando uma pessoa ou empresa processa o Poder Público e ganha a ação, o documento que formaliza isso é o precatório. Precatórios são, portanto, dívidas judiciais do poder público, que já transitaram em julgado, sendo um direito garantido do vencedor da ação.

Quando um precatório é emitido, o valor da dívida deve entrar no orçamento do governo, para ser pago em uma data futura. As requisições, que são recebidas até 1º de julho de um ano, são convertidas em precatórios e incluídas na proposta orçamentária do próximo ano. As recebidas após essa data são incluídas no ano seguinte. Em teoria, os valores colocados no orçamento de um ano devem ser pagos até o final dele. Então os credores dos precatórios que entraram até 1º de julho têm a expectativa de receber seu dinheiro até o fim de 2022. Esses pagamentos têm que estar no orçamento da União, portanto competem com todas as outras despesas do governo. Os precatórios são classificados em:

  • Precatórios de natureza alimentar: são aqueles que resultaram de processos relacionados ao sustento pessoal, como os que disputam salário, pensão, indenização por morte ou invalidez etc.
  • Precatórios de natureza comum: também chamados de não-alimentícios, incluem disputas relacionadas a desapropriações, cobranças incorretas de impostos e descumprimento de obrigações contratuais, por exemplo.

É fácil observar que esses precatórios são contas relevantes do governo, na verdade são despesas que o governo já deveria ter pagado há muito tempo. Dentre os precatórios que deveriam ser pagos em 2022, há contas do governo FHC ainda (1995 a 2002) e de governos posteriores. Nossa justiça é extremamente morosa e essas pessoas que agora se acham na situação de credores do governo podem estar litigando esse direito há 20-30 anos.

A PEC dos precatórios pretende autorizar o governo a parcelar essas dívidas judiciais em várias parcelas. Não me parece justo que alguém que está esperando a 20-30 anos para receber um dinheiro que estas pessoas consideram um direito líquido e certo e que agora o judiciário finalmente reconheceu ser uma dívida certa, de repente tenham seus direitos subtraídos e o que era para ser líquido deixa de ser.

Por outro lado, vendo pelo lado do governo, a média de precatórios por ano tem sido em torno de R$ 40 bilhões e este ano, sem qualquer explicação razoável, aumentou para quase R$ 90 bilhões. O Ministério da Economia que preparava o orçamento de repente viu-se surpreendido com uma conta muito maior do que a historicamente esperada. Há quem diga que o judiciário intencionalmente julgou as ações atrasadas com intuito de prejudicar o governo. Eu acho isso praticamente impossível, pois não iria prejudicar o governo, mas sim os brasileiros, então me recuso a acreditar que o judiciário possa estar jogando contra os brasileiros.

Quando se trata de orçamento da união não há soluções fáceis. O cobertor é sempre curto e alguém vai ser prejudicado.

Prof. Roberto B. Kerr

 

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