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DESGLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA: REALIDADE OU FICÇÃO

Em recente artigo publicado na revista Veja, edição nº 2830 de 01/03/2023 (https://veja.abril.com.br/economia/os-impactos-no-brasil-dos-sinais-de-esgotamento-da-globalizacao-economica/#:~:text=No%20in%C3%ADcio%20da%20crise%20sanit%C3%A1ria,faciais%2C%20equipamentos%20m%C3%A9dicos%20e%20vacinas), comenta-se que a globalização econômica está com sinais de retração e que o Brasil poderia se beneficiar dessa nova fase da globalização.

Embora o processo de globalização tenha passado por altos e baixos desde o seu início, inclusive por pandemia e por guerra recentes, a realidade é que o grande beneficiário ao longo do tempo foi o consumidor global, que continua recebendo a oferta de produtos de elevado nível de qualidade e pagando preços justos face à concorrência existente no mercado global. Daí a se denominar que esteja ocorrendo um esgotamento da globalização por provocar concentração de renda e decadência de zonas industriais por não serem competitivas, ou uma desglobalização como citado no artigo da Veja, é uma ficção que descreveremos mais à frente.

A fim de possibilitar um melhor entendimento da atual situação, convém rememorarmos o processo de globalização, desde os motivos da sua origem até os efeitos observados na economia mundial:

  • O início da globalização está diretamente ligado a dois relevantes fatos políticos ocorridos no final dos anos 1980: a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. Com isso, chegava ao final a Guerra Fria (entre os Estados Unidos da América – EUA e a União Soviética) e os EUA assumiam o controle da economia mundial, passando a prevalecer as ideias liberais de livre mercado e o término dos regimes socialistas europeus;
  • Acelerava-se a evolução tecnológica, iniciada ao final da 2ª Guerra Mundial, com base no desenvolvimento de tecnologias de informação e de comunicação;
  • Os avanços tecnológicos permitiram uma maior aproximação dos indivíduos e a redução das distâncias psicológicas ou psíquicas (conjunto de barreiras que afetam os negócios pelo desconhecimento, por parte dos agentes intervenientes, das variáveis existentes no comércio internacional);
  • Tais fatos causaram significativa ampliação dos mercados consumidores e o crescimento de volume no comércio internacional.

Paralelamente ao incremento do comércio internacional, verificou-se que os países em desenvolvimento altamente endividados tinham dificuldade de participar no comércio de bens industrializados (os quais possibilitam maior geração de renda e de emprego). Além disso, o elevado endividamento externo impedia o acesso a tecnologias mais avançadas, o que tornava ainda mais complexa a participação desses países no novo cenário da economia mundial.

Dadas a necessidade dos países em desenvolvimento participarem do mercado internacional ampliado e a liderança dos EUA na economia mundial, surgiu por parte do governo norte-americano a possibilidade de se reorganizar as dívidas externas desses países com base no Plano Brady (compra, pelo governo norte-americano, da dívida externa de curto prazo dos países endividados e posterior refinanciamento com prazos de até 30 anos, desde que fossem atendidas as exigências contidas no Consenso de Washington).

Assim, para ter acesso ao Plano Brady, os países endividados tinham que apresentar um Plano de Recuperação Econômica (estabelecido no Consenso de Washington) que compreendia:

  • Abertura comercial com a eliminação das diversas barreiras protecionistas existentes;
  • Estabilização monetária, com medidas para fortalecimento da moeda e redução das taxas inflacionárias;
  • Privatização de empresas estatais, principalmente as relacionadas com serviços ao público (energia elétrica, telefonia, fornecimento de gás encanado);
  • Redução dos gastos públicos.

Com as dívidas externas renegociadas e os planos de recuperação colocados em prática nos anos 1990, os países em desenvolvimento passaram a participar do mercado ampliado de consumidores com mais intensidade a partir do século XXI e, dessa forma, surgiu uma forte competição industrial, marcada pela busca dos consumidores por produtos com melhor qualidade e menor preço.

Essa valorização do consumidor, com acesso a produtos melhores e mais baratos, provocou uma guerra de mercado na qual os países economicamente mais equilibrados avançaram e os países com intensos desequilíbrios econômicos ficaram para trás. Nos países com economia mais equilibrada teve início, então, um fluxo de investimentos externos (recursos financeiros e tecnológicos), a fim de melhor se aproveitarem das vantagens competitivas obtidas por esses países e que permitiriam a produção de bens mais competitivos para fornecimento global. É dessa forma que a globalização econômica se desenvolve e a China tem um salto econômico histórico, se transformando no maior exportador mundial e na 2ª maior economia do mundo.

Percebe-se, assim, que os países que mantiveram os princípios do Consenso de Washington estão participando normalmente do comércio internacional com ganhos extraordinários ao longo do tempo. A China, como se viu, é o melhor exemplo dessa transformação e ascensão econômica.

No caso brasileiro, é importante salientar que durante os anos 1990 houve um significativo ajuste econômico (Plano Real) e, com isso, por algum tempo o país tornou-se o 2º maior receptor de investimentos externos (atrás apenas da China). No entanto, por falta de uma política industrial mais consistente, a indústria brasileira não se desenvolveu tecnologicamente e os investimentos se concentraram, na sua maior parte, na indústria de bens de consumo não duráveis (com origem no agronegócio, o Brasil passou a ser um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo) enquanto que a produção de bens duráveis se destinou majoritariamente ao mercado interno, pois a tecnologia disponível internamente não é capaz de acompanhar a tecnologia externa. Diante disso, a partir de 2004, teve início um processo de desindustrialização no país pela perda de competitividade do setor de bens duráveis.

Durante a pandemia da Covid-19 e a guerra entre Ucrânia e Rússia, ficou evidenciada uma forte dependência da economia global (em relação à China e à Rússia, principalmente) e está em andamento uma descentralização dessa dependência a fim de ser fortalecida ainda mais a globalização econômica (este é um forte componente para confirmar que é ficção o esgotamento da globalização econômica). Diante disso e mesmo com um processo de desindustrialização em andamento, há várias oportunidades para a indústria brasileira de bens duráveis (como já dito, é o setor que mais emprega e com melhores salários) uma vez que o país:

  • Está habilitado para solucionar questões logísticas, como suprimento confiável e distâncias próximas dos grandes centros consumidores mundiais, que incomodam significativamente as grandes cadeias produtivas;
  • É uma nação amigável e que possui antigos laços de relações comerciais, econômicas e políticas com nações de todas as partes do mundo;
  • Tem disponibilidade de energia constante e com possibilidade de ampliar ainda mais essa disponibilidade.

Conclui-se, então, que há uma realidade sobre a globalização, que é a sua própria continuidade e a oferta de oportunidades para países como o Brasil, e, também, há uma ficção sobre a mesma, que é o seu esgotamento por estar em andamento um processo de ampliação do protecionismo e de maior controle sobre a terceirização produtiva (que caracterizariam a desglobalização). Além disso, deve ficar muito claro aos países que não fizeram os ajustes necessários na economia local e não se adaptaram ao processo de globalização, que a responsabilidade por ficarem/estarem à margem dos benefícios oferecidos é de inteira responsabilidade desses próprios países. Assim, fica refutado o argumento de que a globalização causou prejuízos a pequenos produtores e, também, a decadência de zonas industriais, em países que não atenderam as exigências de maior competitividade determinadas pelo mercado.

 

Prof. Dr. Francisco Américo Cassano

Doutor em Ciências Sociais – concentração em Relações Internacionais, Professor e Pesquisador dos temas Internacionalização de Empresas e Relações Econômicas Internacionais.

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