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Tudo é descartável: de fraldas à valores morais

"...Mudam-se os valores: agora, o que conta é o novo, o fugidio, o fugaz e o individualismo..."

[ELIEL ROSA] Tudo é descartável: de fraldas à valores morais

Tenho acompanhado sempre que possível os ​interessantes e imensamente instrutivos ​artigos, vídeos e podcasts da Cobizz ​. Aproveito para, uma vez mais, congratular meu grande amigo Luis Porto e seus parceiros no projeto!​

​Um dos temas que sempre chamam minha atenção é o da tecnologia em nosso mundo pós-moderno.​​ Neste presente artigo, quero compartilhar ​algo sobre este tema​ tão relevante, porém sob as lentes da Filosofia​,​ neste que certamente ​é o tempo ​mais ​crítico e ​ambíguo da história ​humana na terra: a Pós-modernidade.​ O texto faz parte do meu livro O Poder dos Valores da Cidade-Rede, lançado na Colômbia e EUA ano passado.​

O termo Pós-modernidade, cunhado no início do século XIX, havia desaparecido por um determinado tempo e, repentinamente, voltou a dar de sua graça no século XX, ainda que mais voltado às práticas da Arquitetura e Urbanismo, áreas do conhecimento que, nesse momento histórico, precisavam criar uma nova terminologia para substituir o Modernismo, já obsoleto aos olhos das elites técnicas e acadêmicas da época.

Todavia, mais que um simples salto qualitativo nas práticas arquitetônicas, o termo efetivamente propôs o raiar de um novo alvorecer no campo da Epistemologia, a ciência da construção do conhecimento.​ De acordo com as Teorias Críticas, a Modernidade, como condição histórica, ​já vinha gradativamente apresentando marcas e evidências explícitas de que seu fim ​era chegado.

Ainda que abordadas​ ​a partir de diferentes​ ​perspectivas, as​ análises filosóficas da Pós-modernidade apontam para algumas características cruciais, entre elas, a​ da exacerbação e predomínio do instantâneo, a perda de fronteiras e​ a ausência absoluta de metanarrativas, gerando a percepção – na verdade, uma convicção​ ​- coletiva de que o mundo está cada vez menor por conta do avanço da​s​​ tecnologia​s. Vivemos atualmente num mundo virtual onde imagem, som e texto voam em velocidades instantâneas.

O renomado sociólogo polonês Zygmunt Bauman, escrevendo para a La Repubblica delle Donne, uma revista semanal dirigida ao público feminino, registrou​ uma ​magnífica ​crônica​​ que​, em minha opinião,​ ​identifica ​de forma dolorosa, porém honesta, ​a realidade do​ ​nosso ​mundo pós-moderno.

Para Bauman, a Pós-modernidade revela-se na explicitação do que antes era a máxima personificação do privado! O sociólogo afirma com convicção – e dificilmente alguém deixará de concordar com sua tese – que a figura mais próxima que temos hoje da Ágora grega, o berço da construção, reconstrução, desenvolvimento e consolidação da democracia ocidental, são os talk-shows televisivos!

Obviamente, os impactos imediatos desta síndrome pós-moderna​ em nossos valores urbanos são dramáticos e já têm-se provado trágicos. Nossas​ sociedades​, que agora experimentam multivariados padrões e graus cada vez mais elevados de complexidade, convivem também, ao mesmo tempo, com altos níveis de relativização em suas relações sociais, nas quais predominam o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e, por fim, o caótico.

Mudam-se os valores: agora, o que conta é o novo, o fugidio, o fugaz e o individualismo. Tudo é descartável: de fraldas a valores morais; de computadores a cônjuges; de animais de estimação a filhos.

A psicóloga e socióloga americana Sherry Turkle, professora do Programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade do MIT, tem desenvolvido várias pesquisas relacionadas à forma como a tecnologia altera não somente o que fazemos, mas quem somos, ou os valores que temos.

Turkle registrou em seu último livro, Alone Together: Why We Expect More From Technology and Less From Each Other(Juntos, porém sozinhos: por que esperamos mais da tecnologia e menos uns dos outros – tradução livre), que a mídia social atual nos confronta com constantes momentos de tentação. Atraídos e engodados pela ilusão da companhia, mas sem as exigências naturalmente pertinentes à intimidade, as sociedades atuais ​confundem mensagens de texto e e-mails com comunicação autêntica. Em sua ​análise, sacrificamos facilmente o diálogo real em prol da mera conexão. ​

No Brasil, impressiona a forma como este endereço de internet chamado “Facebook” cada vez mais define e direciona a vida dos cidadãos. Segundo dados de outubro de 2013 divulgados pelo Jornal O Estado de São Paulo, o Facebook abocanha 73,5% da audiência das redes sociais no Brasil, totalizando 76 milhões de usuários no país!

Uma pesquisa feita pelo Ibope/YouPix no mês de julho do mesmo ano mostrou que 92% dos jovens do país que acessam a internet fizeram uso de ferramentas das redes sociais. Se levarmos em conta o total de pessoas, de todas as idades, que navegam na internet, são impressionantes 78% acessando algum tipo de ferramenta das redes sociais!

​Para ​muitos especialistas, o brasileiro “viciado” em mídia social já virou um novo símbolo nacional​. O brasileiro tem um número de ​”​amigos​”​ muito mais alto que a média global.

A média de tempo que o brasileiro gasta na rede é ​muito ​mais alta que a média global.

​ E é esse tempo gasto na rede (12 horas por mês, segundo o Facebook) que garant​e​ ao Brasil a segunda colocação no ranking de países do Facebook, ultrapassando a Índia, que tem um número total de usuários maior. O Brasil é também segundo colocado em usuários do Twitter, Facebook e Youtube, atrás apenas dos Estados Unidos.

Em 2013, este fenômeno brasileiro foi destaque em duas publicações estrangeiras importantes, o Wall Street Journal, que chamou o País de “capital das mídias sociais do universo”, e a revista Forbes, que definiu o Brasil como o “futuro das mídias sociais”.

Com este ​chocante panorama nacional diante dos olhos, creio valer a seguinte reflexão: poderíamos concluir que nossos milhões de posts, tweets, torpedos e e-mails nos permitem, como pessoas, apresentar-nos como realmente somos ou apenas como queremos ou desejamos ser na vida online?
Não me parece tão complicado concluir que, virtualmente, nos editamos, deletamos, retocamos nossa identidade e, se necessário for, camuflamos nossos valores, antes de nos “apresentarmos” a outras pessoas. No fundo, no fundo, vamos nos transformando em experts em aplicar a tecnologia para maquiarmos as contradições e exigências das relações humanas no mundo real.

E o resultado disso é algo mais ou menos assim: “Algum dia, algum dia, mas certamente não agora, acho que vou aprender a conversar”. Esta foi a fatídica sentença auto-imposta de um garoto de 18 anos em entrevista à psicóloga Sherry Turkle! “Mas, o que pode haver de errado com uma conversa?”, pergunta Turkle. E a resposta é dramática: “A conversa acontece em tempo real e aí eu não consigo controlar o que vou dizer”!

Que tragédia!

Turkle, assim, nos lança um urgente alerta:

“Vivemos na era do “eu compartilho, logo existo”! O problema desta nova lógica é que se não temos uma “conexão”, parece que nos falta algo. Então, o que fazemos? Continuamos a buscar conexões, cada vez mais. Porém, neste processo incansável, acabamos por estabelecer nosso próprio isolamento. Cultivamos a crença de que quanto mais conectados estivermos, menos sós nos sentiremos. No entanto, isso é um grave risco, já que a realidade é exatamente o oposto disso. Nossas fantasias de substituição têm exigido de nós um preço muito alto. Agora, precisamos focar nas muitas maneiras pelas quais a tecnologia pode nos levar de volta às nossas vidas e identidades reais, nossas comunidades reais, nosso mundo político real, nosso planeta real. Eles precisam de nós!”

Eliel Rosa, Sociólogo e Especialista em Políticas Públicas no Texas, EUA

 

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